No Novo Testamento, vemos que um dos grandes desafios dos apóstolos foi ter que lidar com cartas falsamente atribuídas a eles, produzidas por falsos mestres, que, sem qualquer escrúpulo, se passavam pelos apóstolos e chegavam a redigir cartas em seus nomes, com a intenção de corromper o ensino da fé. Não estamos falando de heresias desenvolvidas séculos depois, mas de um esforço ainda bem cedo na história da Igreja para minar a autoridade apostólica e desfigurar a doutrina de Cristo de dentro para fora. Paulo, por exemplo, precisou advertir os tessalonicenses a que não se deixassem abalar “nem por espírito, nem por palavra, nem por epístola como se procedesse de nós” (2Ts 2.2). Ou seja, cartas forjadas já circulavam enquanto os próprios apóstolos ainda estavam vivos. E não só isso — em várias ocasiões, Paulo sente a necessidade de afirmar de forma explícita: “esta saudação é de próprio punho… este é o sinal em todas as epístolas” (2Ts 3.17), justamente para distinguir as cartas autênticas das falsas.
Esse pano de fundo lança luz sobre um dos maiores escândalos da história da Igreja: a produção e o uso de documentos papais forjados e interpolações em obras dos Padres da Igreja pela Igreja Católica Apostólica Romana.1 Muito antes da Idade Média, já se fazia uso de documentos papais espúrios e de interpolações maliciosas nas obras dos Padres, tudo com o intuito de justificar pressupostos que jamais encontrariam base nas Escrituras. No século III, por exemplo, Estêvão, bispo de Roma, tentou impor uma primazia sobre as demais igrejas, apelando para uma suposta sucessão de Pedro — reivindicação que foi veementemente rejeitada pelos bispos da África, especialmente durante a controvérsia sobre o batismo dos hereges. Firmiliano de Cesareia, escandalizado com a arrogância do bispo de Roma, escreveu: “Neste aspecto, sinto-me justamente indignado com a flagrante tolice de Estêvão, que tanto se vangloria do lugar de seu episcopado e alega que detém a sucessão de Pedro”.2
Nesse contexto, Cipriano convocou o Concílio de Cartago onde também repreendeu e condenou Estêvão, escrevendo as seguintes palavras:
“Pois nenhum de nós se coloca como bispo dos bispos, nem por terror tirânico obriga seu colega à necessidade de obediência; visto que cada bispo, de acordo com a liberdade e poder concedidos, tem seu próprio direito de julgamento e não pode ser julgado por outro, assim como ele mesmo não pode julgar outro. Mas esperemos todos pelo julgamento de nosso Senhor Jesus Cristo, o único que possui o poder de nos colocar no governo de sua Igreja e de nos julgar em nossa conduta lá”.3
No século IV, esse problema permaneceu. Zósimo, também bispo de Roma, foi acusado de falsificar4 o cânone V do Concílio de Niceia para legitimar a autoridade papal e tentar submeter os demais bispos à sua jurisdição. Philip Schwerin diz o seguinte sobre isso:
“Quando o Papa Zósimo (418) tentou interferir na jurisdição da Igreja Africana ao falsificar o texto do V cânon do Primeiro Concílio Ecumênico, tanto Santo Agostinho quanto o Bispo Aurélio, no Concílio Africano de 419, advertiram o Papa Zósimo (e posteriormente o Papa Celestino) a não falsificar os documentos da Igreja Católica, nem a “introduzir o vão orgulho do mundo na Igreja de Cristo” e a manterem seus narizes romanos fora dos assuntos africanos (Concílio Africano, 419, cânon 138; Mansi 4, 515; Migne, P. L. 50, 422-425). O mesmo concílio determinou que nenhum bispo pode se autodenominar “Príncipe dos Bispos” ou “Bispo Supremo” ou qualquer outro título que sugira supremacia (cânon 39), e estabeleceu que, se algum clérigo africano se atrevesse a apelar para Roma, seria ipso facto excluído do clero (cânon 34; Mansi 4, 431). (Uma observação adicional é que este concílio, que condena qualquer forma de papado ou supremacia entre os bispos, é frequentemente citado como aquele que deu ao mundo a primeira Bíblia ‘completa’, incluindo os apócrifos”.5
A reivindicação papal feita por Zósimo ocorreu no contexto da controvérsia pelagiana, quando dois concílios africanos já haviam condenado o pelagianismo, e os seus defensores recorreram a Roma em busca de apoio. Zósimo então reivindicou sua autoridade com base em documentos falsificados, que alegadamente provinham do primeiro concílio ecumênico, com o objetivo de anular a condenação proferida pelos bispos africanos. Foi exatamente nesse contexto que surgiu a famosa frase atribuída a Agostinho: “Roma locuta, causa finita est” — “Roma falou, a causa está encerrada” — a qual, porém, é uma interpolação, sendo, portanto, uma falsificação das palavras do bispo de Hipona.6 Isso nos mostra que essa tentativa de centralização do poder em Roma, construída com base em documentos suspeitos, já era algo antigo.
Outro caso ainda mais vergonhoso envolve o cânone 367 do Concílio de Cartago, frequentemente citado como se a Igreja tivesse ali definido oficialmente os livros das Escrituras. O problema é que esse texto, como chegou até nós em certas versões latinas, contém uma interpolação que beira o ridículo. Diz-se que o cânone teria sido enviado ao bispo Bonifácio, em Roma, para sua confirmação — o que imediatamente levanta uma problema cronológico: o concílio aconteceu no ano 397, sob o pontificado de Sirício; já Bonifácio só assumiria a Sé Romana em 418.8 O falsificador simplesmente esqueceu quem era o bispo de Roma na época. E não estamos falando de uma confusão inofensiva, mas de uma adulteração deliberada. Westcott, comentando sobre isso, diz: “o terceiro Concílio de Cartago foi realizado no ano 397 d.C., durante o pontificado de Sirício; e Bonifácio só sucedeu à cadeira romana no ano 418 d.C.; de modo que a alusão a ele é, à primeira vista, desconcertante”.9 A própria ausência desse suposto cânone nos manuscritos gregos mais antigos já seria suficiente para lançar dúvidas sobre sua autenticidade. Mas o que temos aqui vai além de um simples lapso textual — trata-se de uma tentativa de legitimar uma lista canônica a partir de uma autoridade posterior, para dar ares de antiquidade a uma decisão que, à época, não tinha sido tratada no Concílio. Esse tipo de artifício era comum.
Algo semelhante ocorre com o famigerado Concílio de Roma — que, ao que tudo indica, nunca sequer aconteceu. Este Concílio, também frequentemente mencionado como tendo estabelecido o cânon bíblico, é, muito provavelmente, uma construção fictícia. O primeiro documento que faz referência a esse concílio é o Decreto Gelasiano,10 que é amplamente reconhecido como uma coleção espúria de textos atribuídos a papas antigos. Um dos sinais mais claros de sua falsificação está na citação, ipsis litteris, do nono tratado de Santo Agostinho sobre o Evangelho de João — um tratado que só viria a ser redigido entre os anos 406 e 407.11 Mencioná-lo de forma literal em um concílio supostamente ocorrido cerca de duas décadas antes não é apenas um erro: é uma clara evidência de fraude.
Esse tipo de falsificação mostra que, ao contrário do que muitas vezes se repete, o cânon das Escrituras não foi simplesmente decidido por um grupo de bispos reunidos num concílio que, por alguma razão arbitrária, decretaram quais livros seriam considerados inspirados. A realidade é bem mais complexa — e, por vezes, crítica. O reconhecimento canônico foi um processo orgânico, providencial, sustentado por critérios objetivos de apostolicidade, ortodoxia e uso litúrgico, e não por imposições papais forjadas à posteriori.
É provável que o uso de falsificações tenha sido uma prática bem comum na história da Igreja. No século V, vemos Cirilo de Alexandria lidando com uma situação envolvendo a deturpação de uma carta de Atanásio — nada menos que o grande defensor da fé nicena. Cirilo escreve o seguinte:
“Como soubemos que alguns publicaram um texto corrompido da carta de nosso glorioso pai, Atanásio, ao bem-aventurado Epicteto — carta que é, em si, ortodoxa — e, por isso, muitos foram prejudicados, pensamos que seria útil e necessário para nossos irmãos, e enviamos à vossa santidade cópias da carta feitas a partir de um antigo exemplar que temos e que é genuíno”.12
Aqui, vemos claramente como as falsificações dos escritos dos Pais da Igreja começaram bem cedo. Era comum que grupos heréticos se aproveitassem dos obstáculos linguísticos da época — muitos Pais escreveram em grego, outros em latim, e isso criava uma barreira que facilitava traduções tendenciosas e interpoladas. Cirilo continua dizendo o seguinte:
“Pois o Bispo mais temente a Deus de Emesa, Paulo, veio até mim e, após ter começado uma discussão sobre a verdadeira e irrepreensível fé, perguntou-me insistentemente se eu aprovava a carta de nosso triplamente abençoado pai de venerável memória, Atanásio, para Epicteto, Bispo de Corinto. Eu respondi que, ‘se o documento está preservado entre vocês de forma incorrupta’, já que muitos de seus conteúdos foram falsificados pelos inimigos da verdade, eu o aprovaria de todas as maneiras e sem reservas. Em resposta, ele disse que possuía a carta e desejava confirmar se as cópias que nós tínhamos estavam corrompidas ou não. Ao pegar as cópias antigas e compará-las com aquelas que ele trouxe, descobriu que estas últimas haviam sido corrompidas. Ele então pediu que fizéssemos cópias dos textos em nossa posse e as enviássemos à Igreja de Antioquia. E isso foi feito”.13
A grande disputa ali era sobre questões cristológicas. O ponto central girava em torno da verdadeira natureza de Cristo — ou melhor, da integridade da união hipostática. É importante lembrar que Cirilo de Alexandria travava uma disputa teológica decisiva contra o nestorianismo, que, ao separar as naturezas de Cristo em duas pessoas, ameaçava diretamente a doutrina da encarnação como sempre foi crida pela Igreja. Nesse contexto, qualquer documento atribuído a um gigante como Atanásio — especialmente se tratando de um escrito dirigido a outro bispo — tinha um grande peso de autoridade. Por isso mesmo, os hereges tentavam minar o ensino apostólico falsificando textos patrísticos que abordavam a união das naturezas divina e humana em Cristo.
Cirilo, ciente disso, agia com cautela. A deturpação da carta de Atanásio poderia muito bem ser usada como pretexto para justificar erros cristológicos graves, e isso em um tempo onde a confissão ortodoxa ainda estava sendo refinada diante das heresias emergentes. O zelo de Cirilo em buscar manuscritos antigos e garantir a preservação da fé apostólica mostra como eles levavam a sério a integridade dos escritos — não por um tradicionalismo cego, mas por entender que o erro doutrinário nasce, muitas vezes, da distorção sutil de textos e contextos.
Esse episódio mostra como o inimigo da verdade, seja por malícia ou astúcia, sempre buscou infiltrar suas mentiras por meio da corrupção da herança da Igreja. E é notável que os líderes fiéis, como Cirilo, viam nisso não apenas uma questão literária, mas um ataque frontal à fé cristã. Defender um texto genuíno era, para eles, uma garantia que o verdadeiro ensino da fé estava sendo preservado com fidelidade.
Mais tarde, nos séculos VIII e IX, começaram a circular os documentos que hoje conhecemos como Falsas-Decretais de Isidoro, e a famosa Doação de Constantino, que afirmava que o imperador Constantino teria transferido autoridade imperial ao bispo de Roma. Esses documentos nunca haviam sido questionados até o final do século XV, e foram usados por séculos para justificar a supremacia papal. E é justamente no final da Idade Média, no século XV, que esses textos finalmente começaram a ser desmascarados como falsificações grosseiras — um dos grandes estopins para os protestos que culminaram na Reforma Protestante do século XVI.
Em 1439, Lorenzo Valla publicou a obra De Falso Credita et Ementita Constantini Donatione Declamatio, contra a chamada Doação de Constantino, o que provocou um verdadeiro escândalo na época. Essa obra, até então considerada um documento legítimo e usada como base para reivindicações papais de supremacia temporal e espiritual, foi exposta por Valla como uma falsificação grosseira, incompatível com o latim do século IV e cheia de anacronismos históricos. Foi um golpe profundo no prestígio da cúria romana. A autoridade papal, sustentada por séculos por meio de documentos falsos e interpretações forçadas, começava a ser questionada com base em argumentos filológicos e históricos sólidos.
Erasmo de Roterdã também contribuiu enormemente para esse movimento, trazendo à luz diversas interpolações em obras dos Pais da Igreja. Com seu trabalho minucioso, ele mostrou que o texto patrístico havia sido manipulado em muitos pontos, seja por copistas, seja por interesses doutrinários posteriores. Isso fomentou um movimento de crítica textual mais rigoroso e despertou grandes debates sobre a integridade dos escritos da patrística. Pela primeira vez em séculos, começava-se a perguntar: o que, de fato, os Pais da Igreja escreveram? O que foi adicionado depois? E por quê?
Esse movimento ganhou força com o tempo. Já no século XVII, o Cardeal Caetano — um grande defensor do catolicismo romano — chegou a compilar uma lista de obras espúrias atribuídas aos Pais da Igreja, mostrando que nem mesmo em Roma se podia mais ignorar o problema.14 Do lado protestante, o teólogo puritano William Perkins também fez uma análise minuciosa de diversos textos patrísticos, denunciando obras que eram utilizadas para justificar doutrinas antibíblicas e práticas supersticiosas, mas que, na verdade, não passavam de falsificações.
O pai da Igreja que mais foi falsificado, sem dúvida, foi Santo Agostinho. A sua autoridade na tradição ocidental era tão grande que bastava atribuir-lhe uma sentença para que esta ganhasse status quase canônico. Muitas obras pseudepígrafas circulavam em seu nome, especialmente durante a Idade Média. Textos monásticos, tratados ascéticos e até trechos teológicos espúrios foram amplamente disseminados como se fossem dele. Isso gerou confusão teológica e foi usado tanto por místicos quanto por romanistas para dar respaldo a doutrinas que o próprio Agostinho, em sua teologia autêntica, jamais defenderia.
Devido a todos os escândalos sendo expostos, a Igreja Católica Romana decidiu criar uma “comissão” — algo semelhante ao “Ministério da Verdade” dos regimes militares totalitários — com a justificativa de “corrigir” os escritos dos Padres da Igreja e de outros autores antigos. O pretexto era o de remover heresias interpoladas nos manuscritos. Mas o verdadeiro objetivo era muito mais nefasto: suprimir toda e qualquer expressão que contradissesse os dogmas romanistas ou que, de algum modo, favorecesse os ensinos redescobertos pela Reforma Protestante.
Essa operação de expurgo resultou na criação do chamado Index Expurgatorius,15 uma lista de obras “toleradas” somente sob censura prévia, com ordens explícitas para que trechos fossem removidos das edições impressas. No caso de Agostinho, por exemplo, o Index chegou a ocupar onze páginas inteiras em colunas duplas, com trechos condenados ou mandados suprimir.16 Só a seção dedicada a censurar os editores e comentaristas de Agostinho ocupa cinco colunas inteiras.
As edições incluem: Paris, 1531 (Chevallon), Basileia, 1556 (Officina Frobeniana), Lyon, 1586, Paris, 1548 (Ambrosius & Girault), entre outras. Vale lembrar que a célebre edição beneditina (Paris, 1679–1700) ainda não havia sido publicada à época.
Se transcrevêssemos todos os trechos censurados sobre graça, justificação, mérito, boas obras, fé e livre-arbítrio, seriam necessárias dezenas de páginas. Isso, por si só, já evidencia o abismo entre a doutrina de Agostinho e o ensino da Igreja Romana, justamente nas doutrinas que estiveram no centro dos debates da Reforma.
Abaixo, seguem alguns dos ensinamentos suprimidos das obras de Agostinho, que o Index romano declarou inaceitáveis e exigiu que fossem removidos das edições toleradas:
- João preveniu contra a invocação dos santos. (Sanctorum invocationem praecavit Joannes)
- Os santos não são mediadores entre Deus e os homens. (Sancti non sunt mediatores inter Deum et hominem)
- Não é lícito edificar templos para os santos. (Sanctis aedificare templa non licet)
- O uso de imagens é proibido. (Imaginum usus prohibitus)
- É ímpio para os cristãos colocarem imagens de Deus nos templos. (Simulacrum Dei in templis ponere nefas est Christianis)
- Nas imagens não há utilidade. (In simulacris nulla utilitas)
- A invenção das imagens trouxe muitos males. (Simulacrorum inventio multa mala attulit)
- Até os pagãos detestam o uso de imagens. (Simulacrorum usum etiam detestantur Pagani)
- As Escrituras reprovam as imagens. (Simulacra reprehendit Scriptura)
- O culto das imagens é pestilento. (Simulacrorum pestilens cultus)
- Maria, mesmo durante a Paixão de Cristo, duvidou a respeito dele. (Maria etiam in Christi passione, de ipso dubitavit)
- Maria foi mãe da humanidade de Cristo, não da Sua divindade. (Maria fuit mater humanitatis Christi, non Divinitatis)
- Deve-se seguir a autoridade das Escrituras, não dos Concílios. (Non Conciliorum sed Scripturarum auctoritati imitandum est)
- O livro dos Macabeus é apócrifo. (Machabaeorum liber apocryphus)
- Graça e mérito são opostos entre si. (Gratia et meritum pugnant)
- No homem não há mérito algum. (Meritum hominis nullum)
- As obras não precedem a justificação. (Opera non praecedunt justificationem)
- Somos justificados somente pela fé. (Per solam fidem justificamur)
- Não somos salvos pelos méritos, mas condenados por eles. (Meritis non salvamur, sed meritis damnamur)
- [Sobre os sacramentos] — Mandaram suprimir: “Do lado de Cristo manaram dois sacramentos”. (Ex latere Christi manarunt duo sacramenta)
- Os dois sacramentos dos cristãos são o Batismo e a Eucaristia. (Sacramenta duo Christianorum Baptismus et Eucharistia)
- [Sobre o Pão do Sacramento] — Mandaram suprimir: “Cristo é o pão do Reino de Deus e é comido pela fé”. (Panis de Regno Dei Christus, et fide comeditur)
- A carne de Cristo de nada aproveita. (Caro Christi nihil prodest)
- A Eucaristia não é um sacrifício, mas uma recordação do sacrifício. (Eucharistiam non esse sacrificium, sed sacrificii memoriam)
- O purgatório não é encontrado nas Escrituras. (Purgatorium non inveniri in Scripturis)
- Pedro jamais reivindicou para si a primazia. (Petrus Primatum sibi nunquam vindicavit)
Admito que, de fato, há no Index Expurgatorius muitas heresias introduzidas nas obras de Agostinho e de outros Padres da Igreja. Pelagianos, por exemplo, defenderam a imaculada conceição de Maria — algo que Agostinho combateu, afirmando, por exemplo, que Maria morreu por causa do pecado.17 Circulava, inclusive, uma obra falsamente atribuída a Agostinho, intitulada Sobre a Assunção de Maria, como se o Doutor da Graça defendesse tal ensino espúrio.
Mas veja: mesmo que de fato falsificações tenham ocorrido, e que a Igreja de Roma se valesse de certa legitimidade ao revisar manuscritos, muitos dos trechos censurados no Index são autênticos — legitimamente atribuídos a Agostinho e presentes inclusive nas edições críticas modernas em língua portuguesa. Por exemplo, na obra A Doutrina Cristã, Agostinho afirma explicitamente que o número dos sacramentos é dois18 — o que foi suprimido pela Igreja Romana e colocado no Index. Sem dúvidas, esse é um dos maiores escândalos da Igreja Católica Romana.
Outro exemplo notório é o do próprio Cardeal Caetano, que, em seu comentário à Summa Theologica de Tomás de Aquino, também teve diversos trechos removidos pela própria Igreja após sua morte. Aqui fica evidente que Roma não estava preocupada com a veracidade dos textos patrísticos ou com o rigor filológico. O real interesse era excluir qualquer sentença, expressão ou formulação que desfavorecesse seus pressupostos — mesmo que isso implicasse silenciar os maiores mestres da própria tradição latina.
Todos esses episódios, desde o período apostólico até a Reforma, testemunham um fato incontestável: a Tradição, enquanto transmissão histórica e eclesiástica da fé, pode ser — e muitas vezes foi — corrompida. Já a Escritura, sendo soprada por Deus (2Tm 3.16) e preservada por sua providência, permanece imune à fraude dos homens. Deus nunca prometeu preservar uma tradição — nem mesmo uma tradição venerável — mas sim a sua Palavra. Como bem disse Cipriano de Cartago: “Tradição sem verdade é apenas erro antigo”.19 E Tertuliano, com ainda mais clareza, afirmou: “Mas nosso Senhor Jesus se chama a si mesmo ‘Verdade’, não tradição”.20
Ora, se Cristo é a Verdade (Jo 14.6) e se ele mesmo afirma que “a tua Palavra é a verdade” (Jo 17.17), então só há certeza da fé onde a Palavra de Deus é reconhecida como o verdadeiro depósito da verdade divina. A Tradição, se não estiver continuamente sujeita à correção da Escritura, não passa de um canal vulnerável à manipulação ideológica e à superstição institucionalizada. É por isso que os Reformadores restauraram à Igreja o princípio que sempre fora seu por direito: Sola Scriptura. Pois como já dizia Jerônimo, diante da confusão das tradições eclesiásticas: “Alguns podem dizer: ‘Você está forçando a Escritura, não é isso que ela quer dizer’. Deixe que a Sagrada Escritura seja intérprete de si mesma”.21 Em outras palavras, a Escritura não precisa de aval externo para ser clara; ela mesma é seu melhor intérprete, sua própria luz.
Esse ensino, contudo, não é uma inovação da Reforma, mas ecoa a própria voz dos Padres da Igreja. Agostinho de Hipona — cuja autoridade é frequentemente reivindicada pelo romanismo — deixa clara a supremacia das Escrituras sobre qualquer tradição eclesiástica. É nelas que a fé é concebida,22 delas vive o justo, e todo ensinamento só é digno de louvor se estiver conforme sua autoridade.23 Elas são “a regra fixa da doutrina”,24 o “ápice da autoridade”,25 e um “firme alicerce que se sobrepõe às autoridades terrenas”,26 estando inclusive “acima de qualquer documento produzido pela Igreja”.27 E mais: Agostinho declara que “a verdadeira Igreja é provada pelas Escrituras”,28 invertendo por completo a lógica papal, que pretende submeter a Escritura à Igreja.29
Essas palavras seriam suficientes, por si mesmas, para desfazer a ilusão de que a tradição é um canal seguro e infalível da verdade. Mas o escândalo se agrava quando se considera que a própria Igreja de Roma, em diversos momentos de sua história, recorreu a falsificações documentais — como as Decretais Pseudo-Isidorianas, a Donatio Constantini e outros escritos forjados — para consolidar sua autoridade doutrinária. A tradição, ao invés de proteger a fé, foi usada para obscurecê-la. Enquanto isso, a Escritura — mesmo perseguida, marginalizada ou interpretada tendenciosamente — foi preservada pela mão invisível da providência divina, servindo como o filtro purificador da verdadeira doutrina, o tribunal infalível de apelação da fé, e o padrão absoluto de julgamento de todas as tradições humanas.
A Escritura, por sua origem divina e autoridade suprema, é a única capaz de julgar todas as tradições, corrigir todas as corrupções e discernir a verdade em meio à falsificação. Assim como os apóstolos marcavam suas cartas com sinais autênticos, e como Cirilo buscava os manuscritos antigos para preservar a fé, também nós devemos apegar-nos à Escritura como a âncora segura da verdade de Deus no mundo. Só nela — e não em decretos humanos, documentos interpolados ou tradições forjadas — repousa a promessa de preservação infalível da verdade revelada.
NOTAS DE RODAPÉ:
- A expressão “Igreja Católica Apostólica Romana”, embora aparentemente redundante, é utilizada aqui para designar especificamente a instituição eclesiástica que, sediada em Roma, passou a reivindicar para si, a partir do século IV e especialmente após o colapso do Império Romano do Ocidente no século V, a primazia universal sobre as demais igrejas. Esta reivindicação se fundamentava tanto na sucessão apostólica petrina quanto na importância histórica e política da cidade de Roma. Com o tempo, especialmente sob o pontificado de Leão I (†461), esta igreja consolidou sua autoridade institucional, moldando-se como centro da cristandade ocidental e, posteriormente, como cabeça visível do catolicismo medieval. ↩︎
- FIRMILIANO DE CESAREIA. Carta de Firmiliano a Cipriano (Epístola 74) [Tradução minha] ↩︎
- CIPRIANO DE CARTAGO. Concílio de Cartago. Disponível em: https://ccel.org/ccel/cyprian/carthage_council/anf05.iv.vi.i.html. Acesso em: 20/05/2025. ↩︎
- Tenho ciência de que, atualmente, os católicos argumentam em defesa de Zósimo, afirmando que ele teria confundido o Concílio de Sárdica com o de Niceia. Contudo, não considero esse argumento uma resposta satisfatória, visto que os bispos da época repreenderam Zósimo com grande severidade. Isso inclui o fato de que, quando Zósimo reivindicou autoridade para interferir nas decisões do Concílio Africano, os bispos da África, munidos de cópias autênticas do Concílio de Niceia, contestaram firmemente sua pretensão. ↩︎
- SCHWERIN, Philip. How the Bishop of Rome Assumed the Title of Vicar of Christ, p. 4-5. [Tradução minha] ↩︎
- AGOSTINHO DE HIPONA. Sermo 131,10: “Iam enim de hac causa duo concilia missa sunt ad Sedem Apostolicam: inde etiam rescripta venerunt. Causa finita est”. Disponível em: https://www.augustinus.it/latino/discorsi/index2.htm. Acesso em: 20/05/2025. ↩︎
- Cf. Concílio de Cartago (419 d.C.), cân. 24 na versão disponível em New Advent. Disponível em: https://www.newadvent.org/fathers/3816.htm. Acesso em: 23/05/2025. ↩︎
- “Hoc etiam fratri et consacerdoti nostro Bonifatio, vel aliis earum partium Episcopis, pro confirmando isto canone innotescat, quia a patribus ista accepimus in ecclesia legenda. Liceat autem legi passiones martyrum cum anniversarii eorum dies celebrantur”. ↩︎
- WESTCOTT, B. F. A General Survey of The History of The Canon of The New Testament. 5. ed. Edinburgh: Macmillan, 1881. p. 440. ↩︎
- Cf. The Decretum Gelasianum, editado criticamente por Ernst von Dobschütz em Das Decretum Gelasianum de libris recipiendis et non recipiendis in kritischem Text herausgegeben und untersucht (Texte und Untersuchungen, vol. XXXVIII; Leipzig: J. C. Hinrichs, 1912). Com base no exame de mais de oitenta manuscritos, Dobschütz demonstra que o documento em questão não é um decreto autêntico de Dâmaso (366–384) nem de Gelásio (492–496), mas uma compilação anônima elaborada no norte da Itália entre 519 e 553 d.C. Um dos elementos decisivos que denuncia sua pseudonímia está na citação literal do Tractatus IX in Evangelium Ioannis de Agostinho (†430), composto por volta de 406-407, o que torna cronologicamente impossível sua presença num suposto concílio de 382. O próprio Dobschütz conclui que os cinco capítulos do chamado Decreto — incluindo a lista de livros canônicos — pertencem a uma única obra apócrifa, jamais promulgada por autoridade papal. Cf. também F. C. Burkitt, “The Decretum Gelasianum”. Disponível em: https://www.tertullian.org/articles/burkitt_gelasianum.htm. Acesso em: 23/05/2025. ↩︎
- Cf. Marcela Andoková e Robert Horka, “The Chronology of Augustine’s Tractatus in Iohannis Evangelium 1-16,” Vox Patrum (2023), que confirma a datação do Tratado 9 em 406–407 d.C., disponível em: https://www.academia.edu/108776170/The_Chronology_of_Augustine_s_Tractatus_in_Iohannis_Evangelium_1_16_and_Enarrationes_in_Psalmos_119_133_Revisited?. Acesso em: 23/05/2025. ↩︎
- CIRILO DE ALEXANDRIA. Carta 39,8. [Tradução minha] ↩︎
- CIRILO DE ALEXANDRIA. Carta 40,25. [Tradução minha] ↩︎
- Por exemplo, a obra “Explicatio Symboli” de Cipriano é considerada ilegítima devido ao fato de Ário, Eunômio e Fotino serem citados nominalmente, embora não tenham nascido na época de Cipriano. Belarmino também argumenta que o livro “De Trinitate” de Tertuliano não é legítimo, pois os sabelianos são refutados no livro, quando na verdade o sabelianismo ainda não existia. Tanto Belarmino quanto Bonorius admitem que algumas “epístolas” de Clemente, Justino e, principalmente, Dionísio são todas falsas. ↩︎
- Index librorum prohibitorum et expurgandorum novissimus, ed. Antonio de Sotomayor (Madrid, 1667). ↩︎
- Ibidem, p. 270 ↩︎
- SANTO AGOSTINHO. Enarrationes in Psalmos, 34.3: “Maria, filha de Adão, morreu por causa do pecado”. [Tradução minha] ↩︎
- SANTO AGOSTINHO. A Doutrina Cristã. Trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo-SP: Paulus, 2002. p. 164. ↩︎
- CIPRIANO DE CARTAGO. Epístola 74.9. CSEL III.2, p. 806. (século III) [Tradução minha] ↩︎
- TERTULIANO DE CARTAGO. De Virginibus Velandis, cap. 1, in init., p. 2. Tomo III. Halae Magdeburgicae, 1770. [Tradução minha] ↩︎
- JERÔNIMO. Homilia 6 sobre o Salmo 66. [Tradução minha] ↩︎
- AGOSTINHO DE HIPONA. De Civitate Dei, livro XIX, capítulo XVIII. [Tradução minha] ↩︎
- AGOSTINHO DE HIPONA. Contra Cresconium, livro II, capítulos XXXII e XL. [Tradução minha] ↩︎
- AGOSTINHO DE HIPONA. De Bono Viduitatis, livro I, capítulo II. [Tradução minha] ↩︎
- AGOSTINHO DE HIPONA. Confessiones, livro XII, capítulo XVI. [Tradução minha] ↩︎
- AGOSTINHO DE HIPONA. Confessiones, livro XIII, capítulo XXXIV. [Tradução minha] ↩︎
- AGOSTINHO DE HIPONA. De Baptismo, livro II, capítulo IV. [Tradução minha] ↩︎
- AGOSTINHO DE HIPONA. De Unitate Ecclesiae, livro XIX, §§ XLVII–LI. [Tradução minha] ↩︎
- Embora a bula Dei Verbum afirme que a Igreja está abaixo da Escritura, ela ainda se declara com autoridade para fazer o juízo final sobre a interpretação da Palavra. Disponível em: https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651118_dei-verbum_po.html. Acesso em: 24/05/2025. ↩︎